Pequeno Manual para a Escuta de Pássaros

“Hoje é domingo, me deixe em paz!”

O pensamento cruza minha mente, em resposta a outro pensamento, aquele velho conhecido: o senhor juiz, cobrando e censurando, chamando minha atenção ao fato de que não é produtivo estar tanto tempo quieto, só escutando pássaros.

Escutar pássaros não é uma profissão, mas poderia ser. É simples, e por isso mesmo desafiante, muito difícil de se realizar com um mínimo de maestria – porque nossa vocação maior, enquanto humanos, é complicar as coisas.

Uma escuta meia boca (com o perdão da piada poética) é bastante fácil, para qualquer um com o sentido da audição funcionando. Mas escutar como quem medita, ou como quem escuta uma sinfonia, com toda a solenidade ritualística, em uma atenção sustentada ao ponto de fazer o mundo estar todo aqui e agora, isso é raríssimo.

Depende de todo um know-how. Ainda que de um tipo incomum, pois não é tanto um saber fazer: é mais um saber não fazer. É todo um repertório de renúncias, precisas e profundas, pelo qual o escutante se desfaz, uma por uma, de todas as camadas de identidade desnecessárias ao ato de escutar. Reduz-se, assim, esse desperdício de energia quase constante que constitui nosso exercício diário, só parcialmente consciente, de re-afirmar quem somos para nós mesmos, de novo e de novo, para não correr o risco de desaparecer.

(Deixar de ser, naturalmente, é de longe o que mais tememos, sabendo disso ou não, e não há teoria ou tendência intelectualóide que nos suprima por completo esse instinto – que não é nem o de sobreviver fisicamente, mas sobretudo o de sobreviver liricamente: no sentido de um personagem, um eu imaginário recortado da vida em sua totalidade.)

Para realmente escutar a sinfonia de uma floresta, é preciso ser um expert: um especialista em morrer. Pois quanto menos insisto em ser um ser específico, mais se desvela através de mim o Ser, em si. Basta renunciar por um momento à identificação compulsória com a memória, deixando cair no chão (do céu) o peso do passado, e deixando se dissolverem no ar a fumaça de tantos futuros possíveis (desejáveis mas ainda imprevisíveis), tantos mundos imaginários que flutuam ao redor da verdade do simples instante, aqui e agora. Sobretudo, é preciso saber desver a miragem da auto-imagem, que vemos nesse espelho turvo da mente pensante.

Para que não pensem que complico: isso é o mesmo que ficar quieto, bem quietinho mesmo, sem se agarrar a nenhum pensamento. É assim, pela simples ação de não agir (que é a essência da boa meditação), que dissolvem-se as “sólidas” fronteiras que nos circunscrevem a um local espaço-temporal. Eis que a percepção, então, se desvela como uma coisa muito ampla, uma “coisa” cósmica, transcendente ao eu que pensa ser aquele que percebe: a percepção, ampla e aberta, já não é mais refém de um pequenino ponto de vista – ou de escuta, no caso. Consciência não local, ainda que decorada com a singularidade multifacetada de um ser humaninho.

Para a síntese desse ensinamento, que é da mais alta filosofia, eis que cheguei, valendo-me de inequações da poesia, a uma fórmula matemágica: quanto menos eus, mais Deus. (Não no sentido convencionalmente religioso, pelo amor de Deus. Mas no sentido simples, evidente, que pode sem muita dificuldade ser intuitivamente entendido, e até logicamente deduzido: o desse isso, que sempre carecendo de bom nome, é nada menos e nada mais que o conjunto universo, como dizem os matemáticos. É tão somente tudo e todos, e não pode, logicamente, excluir a consciência – que aliás é só o que podemos ter 100% de certeza de que existe, como já me canso de dizer.]

Sendo assim, para bem escutar os pássaros é preciso deixar desmoronar, tanto quanto possível, as paredes invisíveis com as quais nos delimitamos no mundo. Bem, ilustro aqui com pássaros, mas isso vale para escutar – ou ver, ou sentir – seja o que seja, for that matter.

É preciso saber não ser o que se pensa ser. Simples. E por isso mesmo, pela profunda simplicidade, é que para a maioria de nós é tão difícil. Deveria ser uma profissão, insisto. Mas ninguém parece querer me pagar por iluminar o mundo com a luz da pura atenção.

Enfim, tudo bem. É domingo.

Bruno Andante (Vishuddhi)

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