A Poesia da Formiga é a Folha
Em mim a poesia já é quase zen,
se é que isso é possível.
Às vezes meio Manuel de Barros,
arte manual, de barro,
mas mais pretensiosa.
Ainda um tanto pessoal
e com isso muito cheia
de mente, de memória, de mentira.
A poesia flui mais fácil
à medida que vou me despindo de mim.
A vida toda flui bem mais fácil
à medida que vou retirando esses eus
que eu visto para me esconder
de Deus
(um mero nome para o inominável,
apelido para o mistério do infinito).
Ao menos não minto muito:
procuro usar aspas ao redor da cabeça.
Não sei ao certo quem sou,
e essa é minha maior glória.
Dou graças ao nada, todos os dias,
por ter me dado a dádiva da dúvida.
Já não confundo o pensamento com espelho,
tenho cada vez mais preguiça
de murar miragens
e confio que não existe mapa mais confiável
que o meu talento
de me desiludir comigo mesmo.
E já nem incomoda tanto a gritaria
de tanta gente dizendo à vida
o que ela é ou não é.
Eu só descanso meu olhar cansado
de tanto tentar não ver
a simplicidade impensável de tudo.
E deixo as crianças brincarem
de faz de conta, e de fazer contas
e fingir que tudo não é igual a um.
Aqui do meu contraponto de vista
(que é mais vírgula do que ponto)
quando se trata da coisa profunda
a fé é quase sempre cega
e a razão nunca tem razão.
A filosofia que eu almejo é a prática
de ser sem ter que me explicar
pra mim mesmo
só pra poder sentir que existo.
A poesia da formiga é a folha.
E a minha é a comida do olhar,
que eu carrego deixando onde está
(porque pesa infinitas vezes mais que eu).
E até onde o olhar alcança tudo é o que é,
sendo que pouco mais se pode dizer disso.
Sei que o silêncio é o estômago do sábio.
E foi digerindo o tempo
que alimentei o espírito,
e amadureci o bastante
para entender o básico:
1) desistir de sofrer é uma arte
que se aperfeiçoa um tropeço por vez;
2) o maior mestre é o cansaço;
3) a teoria está descrita na(s) cor(es) do céu;
e 4) a técnica é não fazer nada.
O resto vem no canto do vento.
Para avançar no caminho basta respirar,
pra ir mais rápido é só desacelerar
e pra se chegar de vez só é preciso parar.
Pra viver melhor aconselho morrer mais,
ao menos uma vez ao dia.
E pra ser livre de tudo
é só não prender nada.
O resto vem no canto do vento.
Vem no sol que levanta o azul
e na flor que abre a primavera.
Vem na noite que descansa a luz
e no frio que inspira os poetas.
Está tudo aí e nada se esconde.
Mas quem quer olhar?
Eu quero querer.
É por isso que escrevo:
é um contrato comigo mesmo.
Se não cumprir o que professo,
a inspiração me erra
e viver sem ela eu não aguento.
Só se pode rir mesmo: no fim da história
um nobre motivo para essa busca
pela iluminação nossa de cada dia
é o sagrado tédio
– que me inquieta sempre que acho
que já sei quem sou
e me inspira a brincar mais a sério.
Bruno Andante (Vishuddhi)
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